quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Procuro o Dono de ''A Reliquia '' de Eça de Queirós.

Há dias, passava o dedo indicador direito por cima da lombada de alguns livros, arrumados numa estante debaixo de uma fina camada de pó. Faço isso algumas vezes, e ultimamente cada vez mais, o orçamento já não dá para comprar carradas de livros como antigamente.

Estava eu nisto, quando os meus olhos detectam algo, e o meu dedo pára. Era vermelho com um EQ na lombada, puxei-o para fora, e fiz o que sempre faço antes de decidir se compro ou não um livro. Abro numa página ao acaso, escolho um parágrafo ao acaso,  e leio. Este eu nem precisava ler, muitas vezes o li, e só os pormenores não sei de cor.

Acabei de o ler,  novamente, e espanta-me que de cada vez este livro me espanta ainda mais. É claro, é como um espelho em que nos olhamos a nós e ao mundo que nos rodeia. Os tempos mudam, mas a condição humana mantém-se. Encontramos isso em Eça de Queirós como em tantos outros autores desde Platão até qualquer um dos muitos autores que despertam todos os dias.



Este foi o livro que me libertou do fantasma e do síndroma chamado ''Os Maias'', entre outros. Livro do mesmo autor que me quiseram obrigar a ler com a bonita idade de 16 anos (espero que já não faça parte do currículo de ensino). No ano antes tinha lido Almeida Garret, e tinha adorado aquilo, por isso no ano a seguir parti a correr para mais uma aventura literária. Desilusão, só consegui chegar à página 47. Deve ter sido uma caimbra ou dor de burro. Ainda tentei o ''Amor de Perdição'' do Camillo de Castelo Branco, e as Pupilas do Senhor Reitor'' de Júlio Diniz, mas foi pior a emenda que o soneto.

Depois de todos estes traumas, refugiei-me no fascinante mundo de viagens e aventuras de Jules Verne, devorei capítulos e volumes por esse mundo fora, a correr atrás de mundos perdidos e imaginários, de máquinas invencíveis.

Foi durante uma dessas noites de Jules Verne, enquanto trabalhava na monotonia do turno da noite de umas Bombas de Gasolina, que conheci uma pessoa. Sujeito bem disposto e educado. De todos os clientes habituais e de ocasião que por ali iam desfilando durante as sucessivas noites, foi este individuo o único que se interessou pelo que eu lia. Desde logo demonstrou ser uma pessoa culta e inteligente, e isso interessou-me, porque gosto sempre de falar com alguém que pode ter algo para me ensinar. Por entre os camionistas que saiam de madrugada, os porqueiros que levavam os porcos ao matadouro, os feirantes carregados de hortaliça fruta e sapatos, os padeiros, as meninas da noite e seus fieis protectores, e aqueles clientes que eu nunca soube o que eram, mas que invariavelmente pediam sempre os 3 fatídicos - um Nestle dos grandes, um SG Ventil ( podia também ser Filtro ou Marllboro) e um isqueiro Bic dos grandes, não importava a cor, desde que funcionasse, e faziam sempre questão de o experimentar na hora, e que normalmente pagavam com aquelas notas de 2000$, meias fumadas qual chouriço e que por vezes até se colavam ás mãos que nem melaço. Era pelo meio de toda esta gente que por vezes aparecia este Senhor, que um dia me falou de Eça de Queirós,  nomeadamente de um certo livro chamado ''A Relíquia'', depois de denotar em mim qualquer sinal de ateísmo talvez. E eis que, numa dessas noites em que o Senhor por lá passou me apresentou aquele pequeno volume encadernado de vermelho com a tão carismática silhueta dourada de um Senhor de óculo e bigode em pôse de pensamento na capa.

Aceitei o empréstimo, e em boa hora o fiz. Curioso foi que o dito senhor deixou de aparecer. Parecia quase um sonho, alguém que nos aparece enquanto dormimos para nos pôr juízo na cabeça com sábios conselhos.

Nunca mais vi tal pessoa, entretanto acabei de ler o livro, depois deixei aquele trabalho por outro. Perguntei a algumas pessoas se conheciam o Senhor e como o podia encontrar.Foram poucas as pistas que recolhi. Disseram-me que talvez fosse professor na escola preparatória da Corredoura ou do liceu em Porto de Mós, talvez História ou Português, que teria como nome ou alcunha algo parecido com Penção ou Pinção ( que parece coincidir com a assinatura que consta na Contra Capa do livro). Disseram-me até depois que poderia ter falecido.

Certo é, que o livro tem permanecido em minha posse, há cerca de 15 anos.

Quero por isso pedir a todos os que leiam esta mensagem, e por isso desde já vos agradeço, que me ajudem a saber a identidade deste Senhor, para que dessa forma lhe possa devolver o livro, ou em caso de infelizmente se confirmar que tenha falecido o entregar a alguém de sua família, para quem sabe o voltar a ler ou voltar a emprestar.

Há cerca de 15 anos atrás, o dito Senhor teria entre 30 e 40 anos, terá hoje entre 40 e 55  talvez. Teria cerca de 1,70 a 1,75 de altura, estatura media, cabelo preto ou pelo menos escuro talvez ondulado, usava muitas vezes um blusão vermelho, é possível que fosse professor de História e/ou Português, e também é possível que tivesse falecido  nessa altura, como disse há cerca de 20 anos. Teria de nome ou alcunha Pinção ou Penção, que como se pode verificar pela assinatura da contra capa parece condizer. Era uma pessoa alegre e bem disposta, e gostava de conversar, de ensinar e de aprender.

Quero mais uma vez agradecer a este Senhor o facto de me ter confiado este livro sem me conhecer de lado nenhum. Foi uma grande lição que me deu. Os livros carregam e guardam dentro de si a Árvore do conhecimento, mas este de nada serve, ali, parado debaixo de uma fina camada de pó.
 É preciso ir lá, subir a  árvore e comer a fruta do conhecimento.

Mais uma vez o meu muito obrigado. Bem Haja.

Actualização.

O texto acima, foi publicado originalmente no dia 09/08/2012.
Nessa altura, pela divulgação nas redes sociais, consegui localizar o Dono deste Livro.
Trata-se de Nuno Pinção.
Enviei-lhe uma mensagem, à qual me respondeu algum tempo depois. Agradeceu o meu gesto, e fez questão de que eu guardasse o livro para mim. Insisti na devolução. Não aceitou. Insistiu que tinha todo o gosto que eu mantivesse e guardasse o livro para mim.
Agradeci-lhe encarecidamente. Convidei o para tomar um café e dois dedos de conversa. Aceitou.
Esse momento, infelizmente nunca chegou. Nem chegará.
Soube recentemente pelas redes sociais, as mesmas que me levaram de regresso à presença de Nuno Pinção, que faleceu.
Cedo partiu tão ilustre Senhor. Para mim, e comigo, pesará a falha da oportunidade que não tive de voltar a estar na sua presença, para o tal café, e dois dedos de conversa.
No entanto, a sua presença em mim, será sempre uma constante até ao fim dos meus dias. São assim os Grandes seres Humanos. Aqueles que por mais breve seja a sua passagem nas nossas vidas, nos marcam indelevelmente para todo o sempre.
Guardarei, religiosamente ''A Relíquia'', como uma verdadeira relíquia que é, porque é a prova da grandeza dos seres Humanos, aqueles de carne e osso, com virtudes e defeitos, que dispensam o divino, mas que encerram em si a grandeza e a simplicidade dos pequenos gestos, e porque existe em cada um de nós, um Raposinho e uma Dona Patrocínio.

As minhas mais sinceras condolências à Família e Amigos do Nuno Pinção.

Um Homem só morre, quando morre a sua memória, e o Nuno Pinção, para mim não morreu, apenas partiu, numa longa viagem, em busca da Relíquia.

Boa viagem Nuno.

Saint Avold, 01 de Dezembro, de 2015.



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