domingo, 19 de setembro de 2010

CAMINHANDO

                                                                       II
                                                                                      
   Hoje por acaso ate nem esta muito mal, o tempo, um belo dia de sol, o dia hoje acordou bem-disposto, depois de quase uma semana de má disposição, de náuseas e de vómitos que me encharcaram os trapos ate aos ossos, hoje o gajo está bem-disposto, manda um reconfortante calor de Outono, para me enxugar os trapos e os ossos. A mim e ao Sócrates, se bem que ele não se queixa nunca, sempre bem-disposto caminhando a meu lado com a língua de fora qual cascata de agua descendo a montanha, batendo com a cauda sempre a dançar ao ritmo dos passos e batendo de quando em vez nas minhas pernas como que fazendo festinhas, dando alento e força sempre motivando e encorajando, passo a passo. Ele não se queixa, nunca, enquanto chove deixa chover, e deixa escorregar a agua pela camada superficial do pelo, e quando pára manda-lhe uma sacudidela e já esta, manda-lhe duas ou três ladradelas como quem fuma um cigarro em cima do café ou depois de um acto de paixão e já esta, continua caminhando, que inveja, de viver sem complexos ou preconceitos, é o que chamo ser feliz, mas creio que tal nunca alcançaremos, é o preço a pagar pelo fruto da sabedoria, o Sócrates não sabe nada, e nada quer saber, tudo o que tem lhe chega na conta peso e medida, nem mais nem menos, nem passado nem futuro, nem bem nem mal, nem justo nem injusto, nem depressa nem devagar, tudo na conta certa, sem perguntas nem respostas, não são precisas, se não precisas de respostas porque fazes perguntas, se já tens a resposta não precisas de perguntar, só se for para ser chato, como essas almas penadas e irritantes, tipo jornalistas de rua que vão perguntar ao desgraçado que lhe acabou de arder a casa ‘’ – O que é que sentiu ao ver arder a sua casa? ‘‘ ‘‘ - É pá fiquei felicíssimo nem queria acreditar na sorte que tive, com tanta gente no mundo e veio-me arder a casa logo a mim pá, nem cabia em mim de contente pá, isto é muito melhor que ganhar o euromilhões pá. ‘’ Ou então depois de um jogo de futebol perguntam a um jogador da equipa que perdeu ‘’ – O que é que correu mal hoje Babimico para não conseguirem ganhar este jogo? ‘‘ ‘’- Faltou marcá maiz goulos qui o tximi adiversario néé, maiz vamoz trábálhá p’ra ájudá o tximi e si déus quizé i si deus mi asudá vamos consigui dá á volta por cima néé? ‘’. Enfim, há coisas que se fazem por instinto, outras por paixão, por obrigação, por dedicação, por irreverência, por revolta, por amor, por ignorância ou sabedoria, por isto e por aquilo, por tudo e por nada, há aquelas que sabemos por que as fazemos e depois há aquelas que não temos nem puta ideia de porque o fazemos, que é o meu caso, por loucura talvez, por insegurança, irreverência, porque sim ou então porque não? Seja como for aqui estou, caminhando, sem destino e sem direcção, ao sabor do vento das montanhas, da brisa das planícies dos raios de sol e das facas das tempestades de chuva gelada, com este picar de alfinete, com este comichão irritante que me assola o cérebro, este bicho da fruta que invadiu a maçã do meu conhecimento e qual serpente sorrateira deslizou pelas estepes de Sofia por onde vagueio e divago, por onde enlouqueço e me esclareço, por onde pergunto e respondo, onde me ofusco e ilumino, onde medito e contemplo, e pronto assim vou seguindo sem destino e sem direcção, ou com destino escolhendo uma direcção, ou destinado a procurar uma direcção, uma direcção sem destino ou um destino que muda constantemente de direcção, sei lá, o que sei eu afinal, se soubesse não estava aqui, caminhando com o Sócrates a meu lado, ambos de mãos dadas com essa senhora linda graciosa e resplandecente que ilumina o meu ser, essa senhora sem nome, que me sussurra constantemente ao ouvido carícias suaves de flanela que me fazem flutuar e sorrir. E por isso caminho!
   As folhas já caem, quem me dera ser pintor, e pintar um quadro com todos aqueles tons de castanho verde e vermelho de laranja e amarelo, e pô-los a voar ao sabor do vento e da chuva, numa tempestade de cores, qual neve pintando o chão não de um monocromático branco mas num divertido e alegre tapete de cores no qual caminho como numa alcatifa de veludo onde me rebolo nu, e no meio uma macieira, de deliciosos frutos, ou um castanheiro, catapultando espinhos em nossa direcção, um esquilo saltando de ramo em ramo com as bochechas cheias de nozes castanhas, avelãs e bolotas e até quem sabe um javali farejando o chão, ou ate mesmo o Sócrates a correr atrás de um coelho, de uma lebre ou uma perdiz, hum… por isso é melhor não me dedicar à pintura, que filme mais visto, até parece uma cena de caça de um qualquer quadro barato desses que se vendem nas feiras por meia dúzia de tostões, ou de escudos ou de cêntimos, sei lá! Talvez pintasse uma lesma ou um caracol a deslizar pelo tapete de folhas mortas, isso sim seria original, nunca vi um quadro com lesmas, a largarem aquele rasto de secreção ranhosa, a secar e ao brilhar ao sol, isso sim seria original, mas duvido que alguém quisesse uma foto desfocada de irrealismo na sala ou na cozinha, muito apropriado por acaso, se conseguisse fazer essa cena atraente e bonita, graciosa e comovente, isso sim seria original, um verdadeiro artista, fazer com que alguém quisesse exibir na sala ou na cozinha que seria mais apropriado, uma cena repugnante de uma lesma a ranhozar pelas folhas, ao ritmo do tempo, isso sim seria arte, fazer alguém comer uma poia de merda disfarçada de chocolate ou de qualquer receita de pudim caseiro. Mas pensando bem, talvez não fosse assim tão original, porque já anda por aí muita gente a comer gato por lebre, digo, merda por chocolate ou por qualquer receita caseira de pudim, num serviço da ‘’Vista Alegre’’ guardanapos de linho bordado, um centro de mesa desenhado por qualquer arquitecto da moda, recomendado por um qualquer chefe da alta-roda, perfumado com rosas inglesas colhidas numa manha de maresia de primavera no solstício de Outono, e ‘’voila’’ nhanhas a la voicisi d’êtê’’ que delicia, exibindo toda a hipocrisia gustativa aos convivas sentados em poses erectas, geométricas e trigonométricas, exibindo trapos de um qualquer saloio da alta-costura que impinge sonhos e ilusões ao preço de um qualquer sentimento, de um qualquer desejo impregnado de complexos e preconceitos, todas essas coisas que o Sócrates, feliz da vida não conhece, nem sonha que existem, porque para ele a companhia da dita senhora já é mais do que suficiente, providenciando-lhe uns sempre aprazíveis palmos de terra onde ele possa espetar as unhas a esgravatar na terra suja, rebolando-se num qualquer monte de dejectos de um outro animal para lhe tirar o comichão das carraças e das pulgas, sim porque o Sócrates é um verdadeiro ambientalista, defensor acérrimo dos ecossistemas, nada como esses ambientalistas e membros da liga protectora dos animais abandonados e mal tratados coitadinhos exibindo os seus lulus espalhando dejectos pelos passeios e jardins com uma coleira e não sei quantas ampolas de antiparasitas no cachaço, coitadinhas das pulgas e das carraças, e as lombrigas coitadinhas, ai gosto muito dos animais mas não suporto baratas lá em casa, ai sempre sonhei viver no campo, não me consigo é habituar aos ratos dentro de casa, e as cobras que os perseguem no jardim, que horror, que nojo, mas o Sócrates não, com ele o ecossistema vai todo a traz, todo um habitat, pela boa preservação da biodiversidade. Poucas coisas me dão mais prazer que ver um cão de apartamento exibindo o seu dono pela trela, sim porque a escravatura ainda não acabou ao contrario do que se diz por aí, todo Maria não me toques gritando ordens que nunca são compridas mas sim exibidas, e ao primeiro lamaceiro que encontram ou ao primeiro animal morto enterrado ou a apodrecer ao ar, ou uma poia bem fresquinha de algum aflito que se aliviou ali mesmo a traz dos arbustos num momento de aflição, e zás lá vai o lulu a esfregar, comer, a rebolar, a deitar rodopiar, comer esfregar ladrar rosnar, que alegria que delicia, e depois chega o dono, e é uma desgraça quando alguém cheio de salamaleques, complexos e outros preconceitos reza insultos á vida enquanto o cachorro, feliz da vida se ri, com a língua de fora a lamber os beiços a ladrar aos saltos e a lamber a pica, isto meus senhores é felicidade, e rogar pragas á vida por ter de agarrar no bicho fedorento e imundo, subir as escadas do prédio ou o elevador, impregnando todo o condomínio do indescritível fedor, e marcando as impressões digitais caninas com tinta biológica e biodegradável no caríssimo pavimento de um qualquer mármore macio e barato, que vergonha meu deus, e depois entrar com ele no piso perfumado a incenso e meter o detestável e imundo bicho na banheira para lhe dar banho, onde se da banho aos filhos e aos amantes, com champôs da ervanária enquanto ele sacode a agua do pelo e salpica toda a divisão para depois se enxugar num caríssimo turco comprado numa qualquer loja de um centro comercial da moda, e isto meus amigos é ser amigo dos animais, tira-los do seu habitat e obriga-los a passar dias fechado numa prisão de betão, tecido, madeira e verniz, sem poder correr, sem poder cheirar, sem poder marcar território com um alçar de perna e uma mijadela rápida de dois esguichos, sem poder cheirar o cu do patrício da mesma espécie, há mas eu gosto muito dos animais e protejo muito os animais, ate lhe ponho uma mantinha nas costas para que não tenha frio, eu tenho pêlo e pele espessas seu estúpido não preciso dessas merda para nada, eu sou um cão e não um maricas de um humano como tu, vê mas é se me acossas o peito e me das duas palmadinhas no lombo e traz a merda da comida que preciso de afiar o dente, e quando digo comida digo qualquer coisa rica em nutrientes e não essa merda dessa ração que nem cagar faz, que um gajo tem de estar três dia a espremer as costas para tirar um cagalhotosico do tamanho de uma castanha, é que eu Não tenho a culpa de seres um irresponsável que nem um filho és capaz de criar e educar, e que depois se desculpam que criar um filho sai muito caro, mas compram essa ração de merda que custa para cima de um balúrdio, e depois mais umas vitaminas e mais uns complementos alimentares porque essa ração de merda não vale um chavo, e mais umas vacinas e mais uma operação plástica e mais uns brinquedos de borracha, e o raio do cão sai mais caro que os putos, mas bastante mais descartáveis abandonados na varanda pelos quinze dias de ferias nas Caraíbas, ou num qualquer hotel da especialidade, que não são capazes de pagar cinquenta euros por um curso de inglês mas pagam cem euros par ir a Lisboa ao estádio da luz ou de Alvalade ver o clube do seu coração levar na tarraqueta de um qualquer clube de traz da serra, e o arbitro é um ladrão e o culpado é o Pinto da Costa.
E vou voando sem destino ou direcção, qual semente de alface ou de dente de leão, leva-me o vento ao sabor da vida, procurando um sitio onde germinar onde dar vida á vida, pois assim é toda a vida, fugir á inexistência para alcançar a morte o mais tarde possível, fintando-o antes se possível de tirar da inexistência mais umas quantas sementes que voaram sem destino ou direcção, mas com um objectivo, de manter viva e em movimento a matéria, a mesma de que também nós somos feitos, afinal é mesmo isso a vida, matéria, matéria em movimento, um movimento de espiral continuo, sem destino e sem direcção mas sempre com um objectivo bem definido, o de continuar o movimento, e isso é algo de espantoso e de inatingível para a grande maioria dos seres inteligíveis, que entendem o mundo onde se movimentam apenas pela perspectiva das suas próprias vidas, que não entendem que se mantêm em movimento e que pensam nada existiu antes deles mas que eles próprios se mantenham aqui muito para alem da morte, tentam fazer das suas vidas para alem do seu fim o próprio movimento da vida, mas não sabendo o que vem depois por nunca ninguém o ter vivido e regressado para contar a historia, tentam em vão controlar em vida a vida para alem da morte com historias infantis e fabulas mal fundamentadas, porque é enorme o desejo e a ambição da imortalidade, houve no entanto, e continua a haver alguém que pelos seus feitos, e pensamentos conseguiu atingir a imortalidade, a imortalidade do exemplo e das ideias, mas não a da matéria, essa continua em constante movimento e transformação, ao arrepio daqueles que não se conformam que a sua própria matéria que tanta vez lavaram, depilaram, apararam, vestirão, perfumaram, pintarão, apertaram, soltaram, cortaram, colarão, em busca de um ideal efémero, que apenas alcançará a eternidade na memoria dos sobreviventes, e não encaram de bom grado a ideia de que também eles se vão tornar em matéria orgânica em decomposição mal cheirosa ou em cinzas como qualquer outro animal ou vegetal, que desilusão e que grande frustração, e é a isto que chamamos de civilização, esse destino tão poderoso que ainda não houve inventado perfume, roupa, acessório, ou dinheiro que o conseguisse ludibriar.
Há no entanto uma matéria que não é transformável, a matéria da memória, da sabedoria, do conhecimento, pode-se perder, esquecer, pode-se adquirir, pode-se perseguir, pode-se ignorar, mas imutável, podemos sim acrescentar algo de novo em cima do que existe mas nunca alterar ou transformar a matéria da verdade. O ser humano tornou-se especialista em lidar com a verdade, de acordo com as necessidades ou caprichos de cada um ou de grupos de cadas uns, sendo a forma mais usual de lidar com ela, a sua própria ocultação ou adulteração, algumas vezes infelizmente até para sempre, muitas das vezes até a memoria que temos da matéria da verdade, não corresponde ao que realmente aconteceu, porque quando a verdade é demasiado importante, o ser humano entra em conflito pelo seu domínio qual matéria-prima, e como dos fracos não reza a historia, o que nos sobra da memoria não é mais do que a conveniência politica do vencedor, por isso o ser humano se tornou tão implacável e dominador, predador sobre todas a espécies, mas há no entanto uma especial que ele ainda não conseguiu dominar, a Vida, mais conhecida por Natureza, ou Universo, seja lá isso o que for ou que nós pensamos que é, mas seja o que for, recuso-me a inventar mais deuses para explicar seja o que for, é tempo de crescer e de recordar apenas com carinho as historias e as fabulas de encantar de príncipes e princesas perfeitas criados à nossa própria imagem, e á imagem dos nossos sonhos, ambições, expectativas desilusões e frustrações.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

CAMINHANDO


                          I


   E vou andando sem destino ou direcção, caminhando ao abandono de tudo, da vida, da morte, de tudo e de nada, e vou andando, caminhando correndo sem destino ou direcção. Venha sol ou chuva vento ou brisa, seja de noite ou de dia, e vou caminhando sem destino ou direcção, vejo passar as nuvens e os raios de sol, a brisa que me afaga as melenas doiradas quais raios de sol, e sigo pelas estepes, pelas savanas, por montanhas e vales e subo e desço e sigo, sem destino ou direcção, e baixo a cabeça e olho as pontas das botas gastas, passo a passo, um a seguir ao outro, e escuto a melodia desse metrónomo, um a seguir ao outro, essas botas gastas pelo passar dos passos dos metros dos quilómetros, léguas a seguir a léguas. E vou caminhando procurando um destino e uma direcção, caminhando, fazendo o percurso da vida, essa senhora que nos surgiu do nada, que nos foi ofertada, numa certa noite de loucura, alguém que não conhecemos mas de quem gostamos instantaneamente, e juntos vamos caminhando, procurando um destino e uma direcção, e é um amor louco doentio, não podemos viver com nem sem quem 
   E vou caminhando de mãos dadas com essa senhora, procurando e descobrindo, os destinos e as direcções, essa senhora que me ajuda qual minha mãe, atenta preocupada carinhosa professora, sempre mostrando o caminho, e a direcção, metendo por becos e avenidas, por travessas e ruas, por auto-estradas e vias rápidas, por montes e vales, por oceanos e glaciares, mostrando tudo o que de real existe, tudo o que nos rodeia, de bom e de mau, de triste e alegre, de feliz e infeliz, dessas coisas que nos correm no sangue, essa sopa que nos alimenta, que nos dá uma certa senhora a comer à boca qual mãe dedicada, essa sopa que nos dá força e alento para continuar a caminhar, à procura desse destino e dessa direcção, e vamos compreendendo e confiando nessa senhora que segue a nosso lado procurando o caminho, de mão dada, balançando aos saltinhos, por essas veredas verdejantes, ao largo de um lago de margens ondulantes de brisas e de tempestades, e também de mares de calmaria, por ondas enormes tocadas pela força do vento navegando mundo fora, de mão dada com essa senhora, essa senhora que é minha, companheira e amiga, mulher e amante, e caminhamos, corremos, navegamos, voamos sem destino ou direcção, descobrindo, passando pelas coisas e aprendendo, porque é ela que nos ensina, essa senhora, que conheci numa noite de paixão, e que uns meses depois numa manha equatorial, ao saltar do sol, se fez luz, e vi o que fizera bem, e chamei-lhe vida, e assim nasceu o universo, as noites e os dias, e vi que fizera bem,  ela agarrou-me pela mão e começamos a caminhar, à procura de um destino e de uma direcção, e vi que era bem…

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Se a religião é o ópio do povo, então, a hipocrisia é a cocaina da sociedade moderna

É uma correria de manha á noite, desenfreada louca, sem sentido sem nada, é despertar ensonado depois de um sono á pressa, depois de um serão da mais  profunda amizade virtual, despertar, acordar, levantar, lavar arranjar, são os filhos que é preciso mandar para a escola, dar o pequeno almoço aos filhos e ao marido, a mesma rotina, sempre a mesma rotina, o mesmo fado, a mesma vida, a mesma sina, o mesmo enfado, o mesmo sacrifício, o mesmo aborrecimento, que vida mais sem sentido, uma vida no meio de milhões de vidas de almas gémeas, perdidas, atrofiadas, frustradas, as mesmas todas sem sentido, sem nada. É uma correria desenfreada em busca do inalcançável, em busco do inverosímil, em busca de tudo e de nada, em busca dos sonhos que as mantém acordadas, a respirar, a sentir o vazio, a ver o tempo passar, o correr, ser disparado como relâmpagos, a vê-los passar diante dos olhos, diante da vida, diante de nada. É a solidão de um grão de areia no deserto, a solidão do ser de entre os seus pares, a solidão da vida no meio da própria vida, já não há alma já não há sentimento puro, é todo um ar impregnado de poluição hipócrita, é a força e a pressão de um grão de areia na superfície do deserto sofrida pelos seus iguais, tanta união e tanta solidão, como é possível, a inteligência do Ser desafiou a vida criadora, a sabedoria da evolução? Tantos dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos, milénios, milhões e milhões de anos, de milhões de anos-luz de evolução, tudo deitado ao lixo por este Ser numa questão de milionésimos de segundos no contexto global da evolução, que Ser mais cruel e atroz, mais sádico e mesquinho, mais invejoso e detestável, que esta pequena maravilha da evolução, nem um piscar de olhos passou e já está, foi tudo pela agua abaixo, é tão grande a dimensão do desastre que se adivinha, que nem em todas as línguas da terra há letras e palavras, sons, gestos e expressões para explicar tal fenómeno.
     Tão juntos e tão sós estamos nesta vida, a correr, a saltar sem destino ou direcção, estamos a deixar de ser saciáveis dentro desta sociedade, é a transformação total daquilo que somos, é uma catástrofe de dimensões inimagináveis ainda por enquanto, é o correr de manha á noite, o cruzar com vizinhos que não se conhecem, que podem ser até bandidos, de gravata bem vincada e barba bem aparada, que nos sorriem de gestos agradáveis e simpáticos, é o buzinar e os gestos obscenos, a quem dizemos não ser civilizado, é a supremacia do narcisismos elevada á potencia do cubo da nossa hipocrisia, é o correr, sempre a correr, sem demoras, sempre atrasados, sempre em busca do que não temos sem saber o que realmente queremos, e assim se passam as noites a seguir aos dias, na vastidão abissal do tempo, sem saber compreender qual o nosso lugar. E corremos, sempre a correr, em busca do inalcançável, porque não sabemos o que somos, já esquecemos de onde viemos, não fazemos a mínima ideia de para onde vamos.
    Por isso corremos, sempre a correr, para não chegar tarde não se sabe onde, para chegar cedo sem saber porque, e corremos, como tolinhos, porque os outros correm, como ovelhas que somos, pois quem me dera ser feliz como as ovelhas que sabem sempre ocupar o seu lugar e morrem sempre felizes sem nunca dar luta a uma qualquer corda que se atravessa no caminho da lã do seu pescoço, é o conhecimento que os faz correr, é a ignorância da nossa felicidade que nos atraiçoou. Se a religião é o ópio do povo, como alguém uma vez disse, então atrevo-me a dizer que a hipocrisia, é a cocaína da sociedade moderna, e que o conhecimento é a dolorosa e interminável ressaca nas nossas vidas. 
    Por isso corremos, para matar esse vício, para acalmar a nossa dor, e alimentamos esta doce vingança da Natureza. Por isso corremos, para o trabalho, deixamos as crianças entregues aos pais adoptivos, aqueles que não lhe são nada mas que são na realidade quem mais vive com eles e quem melhor os conhece, são como que despejados numa estufa de ensino, de onde mais tarde são retirados e confrontados com a dura realidade, do tempo, do calor escaldante e do frio atroz. E corremos, sempre a correr, sem destino ou direcção, sozinhos, sempre sozinhos, isolados num mundo cheio de gente, voltamos e reunimos os indivíduos, sempre reunidos sempre juntos mas sempre tão sós, ninguém se conhece ninguém se entreajuda, já não há vizinhos, já não há famílias, já não somos uma sociedade, somos apenas o somatório, um exercício de álgebra, um resultado de uma equação, somos números aleatórios numa tabela de Excel, onde alguém nos joga e manipula, qual escravidão de algoritmos, sem vontade própria, sem ser, sem eu, sem tu, sem nada, tudo vazio, tudo em fila indiana, em busca de uma malga de caldo desenxabido, rico em hidratos de carbono e gorduras carbonizadas, já não há vitaminas, nem sais minerais, nem proteínas. 
    E por isso corremos, sempre a correr, ao som do tempo, ao sabor do vento, e cansados, de ouvidos saturados, de cérebros inchados, sentamo-nos, diante desta maquina infernal que nos vicia e acaricia, Que nos mima e ouve, que engole as nossas lágrimas, que escuta os nossos desabafos, que alimenta os nossos sonhos, que ilumina os nossos tristes e desolados e inconformados rostos, e temos todo um mundo á nossa disposição, há distancia de um click, ao tempo que demora a carregar num ENTER, e tudo se abre á nossa frente, milhões de pessoas, membros de uma sociedade que cada vez menos existe, que nos insultam e ofendem, que nos protegem e defendem, que nos acariciam e abraçam, que nos dão mimos livres de sons, tons, cheiros, afagos, gostos, de calor, nos dão tudo sem nada, ate amor e sexo livre de riscos de infecção sem protecção, é todo um mundo lindo rico e maravilhoso de sonhos e ilusões, que nos são vendidas pelo preço de nada, do vazio, da frustração, da agua na boca e da sensação de falhanço, com o amargo do saber a pouco, com o sonho do querer mais, de ter o que não se sabe existir, de voltar a conhecer o que nunca se provou. Por isso corremos, sempre a correr de um lado para outro , pior que formigas, já não temos nem deixamos rasto, apenas corremos, sem saber porque corremos, mas como os outros correm, nos corremos também, mas não sabemos porque o fazemos, apenas corremos…